A ocasião - na música - faz o padrão.
Em tempos atuais, muita gente acha que quanto mais rápido e fácil melhor, não é mesmo?
Principalmente após a consolidação das principais mídias sociais do momento, como o Instagram e o Tiktok. Quando analisamos uma música que viraliza nessas plataformas, nos damos conta que apenas um trecho ganha a atenção do público. Geralmente são cerca de 15 segundos necessários para uma sequência de movimentos de dança em frente à câmera que serão rapidamente substituídos pelos próximos 15 segundos da moda!
Seria esse consumo desenfreado e superficial da cultura pop a explicação para a diferença dos processos criativos entre a música de concerto e a música popular?
É tudo culpa da indústria da gravação?
Muitas pessoas podem falar que é por conta do rádio, pelos formatos do LPs ou CDs que a maioria das músicas tem uma duração media de pouco mais de 3 minutos. Muita gente acredita que essa duração é uma exclusividade da nossa era, ou de uma era logo atrás, dos anos 1900, reflexo do desenvolvimento da indústria fonográfica.
Da mesma maneira, pode-se também atribuir o reducionismo musical de uma obra - os 15 segundos de duração de um video no Instagram ou TikTok - ao formato atual favorecido pelas mídias sociais.
Mas tem algo ainda mais fundamental e que veio muito antes dessa tecnologia toda. Você consegue imaginar o que é?
Contexto social, hábitos de performance e consumo!
Onde essa música seria tocada? Para quem ela seria tocada? Qual sua função neste determinado contexto cultural?
Contexto como fator determinante
Já imaginou entrar no seu bar favorito e se deparar com Mozart nas caixas de som? Me parece um tanto quanto confuso e inadequado, não é mesmo? E qual seria a reação do alto clero, lá na Idade Média, ao ouvir uma canção de trovadores durante uma celebração?
A realidade é que a ocasião, na música, faz o padrão.
A música serve uma série de funções na vida das pessoas. Música de fundo, música para prestar atenção quietinho e refletir, música pra se emocionar, música para cantar junto, música para dançar... Eu poderia preencher linhas e mais linhas descrevendo os mais diferentes contextos nos quais a música exerce um papel. E é interessante observar como - independente da época e das especificidades de cada situação - as emoções relacionadas a experiência musical são universais. Cada música, cada formato, pode ter seu espaço e tempo para existir. Sejam os 15 segundo para uma dancinha no Instagram, os 3 minutos de uma canção popular, 10 minutos de uma gravação de jazz cheia de solos, ou mais de uma hora de uma sinfonia.
Das tavernas da idade média aos bares modernos e casas de show
Das tavernas aos bares modernos, as pessoas têm a música como parte daquele ambiente de descontração. Seja nas festas, para dançar, ou nos shows, para cantar junto, acompanhando o artista. São canções que de certa forma provocam identificação, seja pela história contada na letra ou momento de vida do ouvinte. Pode-se dizer que a música popular de hoje é decorrência de tradições anteriores, como a dos trovadores que contavam histórias curtas, através de melodias, acompanhados de um alaúde.
Dos salões da nobreza às salas de concerto
Já quem aprecia eventos em salas de concerto, busca uma experiência sonora bem diferente. É como se a música de concerto fosse o veículo para uma viagem musical mais longa. Muitas vezes também mais abstrata, devido ao caráter predominantemente instrumental. E já que estamos falando em evolução, pode-se afirmar que o cenário atual da música clássica deriva das nobres salas da aristocracia ou das músicas de reverência tocadas nas igrejas.
Fica claro que os hábitos de performance e consumo entre a música popular e a música de concerto são bem diferentes. O contexto cultural e social é outro.
A influência da tecnologia
Um fator importante para refletirmos quando falamos sobre a mudanças dos hábitos de criação e consumo da música é justamente a tecnologia, ponto de partida desse artigo. Devemos entender como nossas ferramentas de criação e comunicação influenciam o cenário musical - tema que pretendo desenvolver em um outro artigo futuro.
Um exemplo, muito anterior as mídias todas discutidas nesse artigo, são as partituras. A notação musical explica - de certa maneira - o desenvolvimento de músicas mais longas e complexas. O avanço da grafia musical, sua prática e leitura, principalmente a partir do Períodos Renascentista e Barroco, possibilitou que compositores tivessem mais liberdade para inventar as suas obras.
A criação de tais composições também influenciou o público, sua percepção, hábitos e expectativas. Uma nova cultura foi se criando, oportuna para estas obras mais longas serem apresentadas. Um novo cenário musical surgia com demanda por esse novo tipo de experiência, incluindo espaços construídos especificamente para esses eventos: as salas de concerto.
Da mesma maneira, a criação e popularização de novos meios de reprodução influenciaram novos hábitos de consumo (e criação) musical, seja um LP ou CD nos anos 1900, ou aplicativos de mídias sociais nos anos 2000.
Se observarmos bem, podemos perceber que até mesmo esse formato de poucos segundos adotado como padrão nas mídias sociais de hoje em dia já acontecia no passado também, de outra maneira. Jingles publicitários são um exemplo. Outro bom exemplo é o hábito do publico cantarolar um pequeno trecho da melodia de suas canções favoritas. Isso já era um hábito comum de muita gente há muito tempo. Muito similar a essa cultura reducionista dos 15 segundos dos vídeos no Instagram e TikTok.
Entendemos então que essas diferenças de formato e duração não são algo exclusivo na nossa era. Os hábitos de consumo, a tecnologia e o contexto influenciaram as criações artísticas ao longo da história. E vão continuar a influenciar! A beleza disso tudo é que todas essas formas musicais podem co-existir e encontrar seu espaço, seu público.
Agora que você já conhece um pouco sobre como os gêneros se desenvolveram ao longo da história, arriscaria um palpite sobre o futuro? Tendo em vista nossa atual realidade, quais seriam os possíveis rumos da experiência musical?
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Sobre o autor
Rafael Piccolotto de Lima foi indicado para o Grammy Latino como melhor compositor erudito. Ele é doutor em composição de jazz pela Universidade de Miami e tem múltiplos prêmios como arranjador, diretor musical, produtor e educador.
Suas obras foram estreadas e/ou gravadas por artistas como as lendas do jazz Terence Blanchard, Chick Corea e Brad Mehldau, renomados artistas brasileiros como Ivan Lins, Romero Lubambo, e Proveta, e orquestras como a Jazz Sinfônica Brasileira, Orquestra Sinfônica das Américas e Metropole Orkest (Holanda).
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